sábado, 10 de abril de 2010

Conto nº 1


Se não fosse por alguns buracos feitos na velha janela de madeira por onde passava a luz do dia, podia-se dizer que o pequeno quarto, ou “aparelho”, estava completamente às escuras. O rangido do velho ventilador de teto era o som constante que Elias ouvia nos últimos cinco dias. O lugar era vazio de tudo. Um pequeno rádio de pilhas era o único luxo encontrado ali. Afinal, precisava saber das notícias, dos companheiros, do Brasil e do mundo, naqueles anos de chumbo.
            Às vezes ficava perdido no tempo, sem saber que horas eram ou o que fazer para que elas passassem. Dormir e ler velhos livros de ideais revolucionários era o que mais se podia fazer, ali.
            Mais uma vez o calor sufocante do verão carioca interrompeu o sono agitado de um dos mais antigos integrantes do MR-8, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Acordou, mas preferiu ficar deitado, olhando para o teto e tentando contar pela enésima vez quantas voltas as velhas e enferrujadas hélices davam antes que o rangido soasse.
            - Esse maldito calor vai me deixar louco!
            Mas não podia sair. Os disfarces já estavam manjados pelos militares. As operações já não surtiam efeito, pois as notícias corriam mais rápido. Os amigos iam caindo, um a um, e a maioria não agüentava tanta tortura e começava falar.
            - Milicos filhos-da-puta! Tenho que ficar preso feito um bicho, sem comida que preste, sem água, sem nada, só esperando a salvação ou a morte chegarem. Parece até música do Raul – sorriu. Afinal – pensou – ainda tinha algo de senso de humor. Mas até quando?
            Olhou para o relógio. Passava pouco mais das duas da tarde e isso deixou Elias preocupado. Alguém deveria ter mandado a quentinha do dia naquela altura.
            – Mais um dia comendo bolachas não vai dar – disse isso enquanto procurava um espelho.
– Estou cada vez mais magro... e velho.
Era verdade. Aparentava bem mais do que seus 27 anos. Continuou olhando para seu reflexo naquele espelho amarelado e quebrado. Será que aquilo tudo valia a pena? Quando foi preso pela primeira vez ouviu claramente alguns populares o chamando de “comunista filha-da-puta e assassino”. Mas não era para libertar aquele povo que ele e seus amigos estavam se sacrificando? Ficou confuso.
- Olho pra você – apontando para o espelho – e vejo Ricardo Molina e Silva. Bancário, casado, pai de dois filhos. Mas que merda é essa? Eu não sou nada disso, porra. Eu me chamo Elias da Costa, filho do seu Juarez, do mercado e de dona Marina. E meus irmãos, meus sonhos... Minha vida? E a Cíntia? Ah... Cíntia
Afastou-se e se sentou no único banquinho, para não cair. Respirou uma, duas três vezes.
– Eu não posso desistir agora. Muita gente depende de mim. Se me pegarem...
Não terminou a frase, pois não queria pronunciar aquela palavra infame: tortura.
– Prefiro levar um balaço a ficar pendurado num pau-de-arara, ir pra cadeira-do-dragão, sofrer afogamentos! Não vou!
A revolta o fez pronunciar as últimas palavras alto demais, por isso decidiu se deitar novamente e ficar ali, calado, esperando.
Enquanto tentava lembrar os nomes de todos que já haviam caído nas mãos dos milicos ia percebendo o quanto o quarto ia se tornando mais escuro, vazio e silencioso. O exercício mental estava funcionando até que foi interrompido pelos dois sinais em código feitos do lado de fora da porta. Uma batida, um arranhão na madeira. Uma nova batida e um arranhão na madeira.
– Já não era sem tempo, Matias, vocês querem me matar de fome neste inferno?
Antes de respirar para continuar seu protesto sentiu o cano frio da arma encostada em sua testa suada e quente.
- Matias, caiu!

Foram as últimas palavras ouvidas por Elias.

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