sexta-feira, 26 de março de 2010

A FÁBRICA DE PARAFUSOS


Cada vez mais eu acredito que o poder do sistema pode transformar pessoas. “Conhecereis as árvores pelos seus frutos”, filosofou certa vez, o Filho do Homem. E é desses frutos que falo. Observo que profissionais de imprensa tarimbados no mercado, com muitos anos de redação – e aí falo do telejornalismo – vivem num mundo paralelo. Depois de anos bombardeados pela correria dos fechamentos de um, dois, três programas jornalísticos; depois de anos vivendo sob a pressão do tempo, de uma matéria que “cai”, de uma edição em cima da hora ou coisas do tipo, tudo isso faz com que estes profissionais, depois de anos trabalhando nesse ritmo, acabem se deixando engolir por uma velocidade irreal, por problemas que só existem nesse mundo paralelo. Decisões que devem ser tomadas no calor dos fatos, um “ao vivo” que não sai, uma pauta que não se completa, são situações que alimentam e tornam a alimentar as mentes, que hoje, são prisioneiras da vertiginosa corrida para não se sabe onde. Mais pontos no Ibop? Mais patrocínios? Agradar interesses pessoais? Mais pautas com menos repórteres e em menos tempo? E a qualidade? E o produto final que será captado pelo telespectador que, reza a teoria, deveríamos informar, e bem? 
Um dos sentimentos que reconheci quando escrevi minhas primeiras matérias foi a frustração. Ele, o sentimento, chega ao exato momento que sai a qualidade para dar lugar à quantidade. Podemos comparar isto com uma fábrica que produz parafusos. Todos iguais, eles saem aos milhares ao simples apertar de um botão ou o puxar de uma alavanca. O tal sistema a que me referi na primeira linha deste texto, é esta fábrica. O sistema ordena que se produzam pautas aos milhares, em cada vez menos tempo, cada vez mais parecidas. E nesta tempestade ininterrupta, os profissionais tarimbados fazem o papel da mão que de tempos em tempo, em meio a relâmpagos e trovoadas, devem acionar a alavanca da prensa produtora de pautas. Muitos deles fazem isso sem o saber, já foram lobotomizados pelo corre-corre das redações. Não conseguem mais olhar para os lados.

A RUA ENSINA


O repórter de rua, digo, aquele que realmente vai cobrir matérias em bairros, por exemplo, se depara com importantíssimas lições. Se bem observado, pode-se fazer uma especialização em política social, sociologia e teologia, só para citar as ciências humanas mais próximas do dia-a-dia. 
Hoje foi dia de me pautarem – mais uma vez – para cobrir uma das 103 áreas de risco de Fortaleza. Para quem não é da “Terra-do-sol”, estas áreas são locais catalogados pela prefeitura onde muito provavelmente – leia-se: constantemente! – podem acontecer inundações. E lá fomos nós para o bairro Quintino Cunha, ou melhor, para a periferia da periferia do bairro. Sem exageros, um dos locais mais sofridos que pude ver e cheirar. Sim, esses locais vêm carregados de imagens e cheiros ruins de verdade. Como disse no meu texto que foi ao ar, é difícil acreditar que pessoas possam viver em um ambiente como aquele. Eis aí a sociologia. Foi a primeira vez que fiz uma reportagem de botas tipo sete léguas. Era isso, ou quem sabe sair de lá com algum tipo de contaminação. É incrível como os moradores, incluindo velhos e crianças, andam despreocupadamente sobre a lama escura e mal cheirosa. Em lugares como o que eu e nossa equipe visitamos, muita coisa pode ser chamada de incrível. 
Nas entrevistas com as mulheres – os homens nunca estão. São elas que agüentam o peso maior tendo que cuidar da casa e dos filhos – ficou claro a dependência que comunidades carentes têm dos poderes públicos. Os apelos ainda são voltados para o emocional, para o “qui us pulíticus tenha pena de nois” . A resolução dos seus problemas ainda não passa pela obrigação dos governantes e legisladores, ou seja, pela razão na cobrança dos direitos civis. Mas é claro, seria pedir muito para quem mora com cinco, seis filhos, em uma barraco a pouquíssimos metros de um rio Maranguapinho cheio e nervoso com as últimas chuvas. Para o sustento, menos de um salário mínimo por mês. Eis a política social. 
É difícil crer que alguém possa terminar uma pauta como esta da mesma forma que começou. Se tiver algum colega que faça isso é por que já foi cooptado pelo sistema. E ainda nos pedem frieza e distância e ainda não se envolver emocionalmente com a matéria. Que seria dos imparciais? 
Ah, não pensem que esqueci do terceiro ensinamento: o teológico. Mas este é muito particular, é profundo demais. É um sentimento e experiência únicos. Só vivendo o momento e olhando nos olhos lamentosos de um povo sofrido para ensinar algo à nossa alma. 
Como diz o jornalista Ricardo Kotsho, “lugar de repórter é na rua”. 
Concordo.

DO LIXO AO LUXO


Esta penúltima segunda-feira do mês de abril já pode representar muito bem a idéia abstrata de viver várias vidas numa só. Falo sobre a comparação da segunda pauta com a quarta – sim, como meu colega do período da tarde não veio trabalhar por motivos de doença, sobrou para mim. A segunda pauta foi exatamente nos salões e corredores da Assembléia Legislativa cearense. Depois da reforma e ampliação do prédio, a “casa do povo” nunca esteve tão bonita, limpa e arrumada. Sim senhor, é de dar orgulho ao povo cearense ter uma casa tão, digamos, chique. Mas chiques mesmo estavam os que participaram do primeiro encontro para a revisão de artigos da constituição do Estado. Ex-governador, deputados, prefeitos do interior, juristas e os legisladores estaduais, além da imprensa em peso, é claro, todos estavam lá. Revisar a carta magna do Ceará é realmente notícia muito importante, sem dúvida. Interessante que logo após o almoço, depois de cumprida a pauta da AL, de escrito os off’s e de tê-los gravado, me dirigi com a equipe para a comunidade Maravilha.

Para quem conhece o lugar não há nada de maravilhoso por lá. Talvez seja o único local da cidade onde existam barracos de dois andares, tipo sobrados. A favela, que fica às margens de um dos canais que corta Fortaleza, é extremamente pobre. A prefeita Luizianne Lins já assinou ordem de serviço para retirada das famílias do lugar (uma centena, mais ou menos). Mas, depois da chuva forte que caiu sobre a Capital, no último sábado, os habitantes de lá padeceram pela enésima vez com a água fétida invadindo os seus barracos.

Então, do chão de mármore de alta qualidade da AL, para o barro ainda úmido da favela Maravilha. Do cheiro embriagador dos diversos tipos de perfumes alocados num mesmo ambiente e de seus donos bem vestidos ao fedor – muitas vezes tb embriagador – do canal de águas mortas e apodrecidas da Maravilha. Por lá, a revisão de leis que os moradores de cá nunca tiveram acesso.

Lembro-me agora de sair do prédio da Assembléia e comentar com o cinegrafista da equipe sobre a qualidade dos veículos estacionados no local. Poucas horas depois estaria fazendo a mesma coisa, só que os carros em questão possuíam apenas duas rodas, tinham as pernas e braços como motor e carregavam dezenas de garrafas plásticas para a reciclagem. Os donos, moradores da comunidade Maravilha.

Um novo Início...


Já é mais do que sabido - porém, pouco lembrado - que vivemos muitas vidas, todos os dias. Na profissão de repórter é possível vivê-las também em lugares diferentes; em situações diferentes. Como saio com três pautas a serem cumpridas diariamente pela manhã, posso estar na primeira pauta com o Governador do Estado do Ceará. Na segunda, com os ribeirinhos do rio Cocó e, na terceira, com um grupo de crianças em sua aula inaugural de como salvar o planeta da poluição. Ainda. Depois de cumprir as pautas, ainda permanecer na redação da televisão em busca de novos assuntos. Isso em meio às conversas dos colegas e as cobranças do editor, diretor, etc. Mas não pense que as várias vidas vividas numa só terminaram por aí. Tenho que, depois do longo expediente que extrapola as oito horas, viver a vida do pai e marido atencioso, quando não, a do estudante de francês e a do pretenso aluno do mestrado em sociologia, a de músico/cantor e escritor de crônicas, contos e etc.
São as várias vidas vividas numa só. São as várias vidas que já são observadas de um modo peculiar. Refiro-me aos atropelos a que estamos nos acostumando e aos quais estamos dando o ar de normalidade, mesmo não sendo. Agora serão postadas aqui. Apenas isso fará o dia de hoje diferente do amanhã. As observações do cotidiano, do jornalismo e as reflexões sobre eles estarão aqui, diariamente, sempre acompanhadas de vários “temperos”.

Em fim, a penas quero deixar claro que estou tentando cumprir a maior de todas as pautas: viver!

D. A